quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Leve como a pluma...


Uma pluma descia dos céus, e eu, observador eventual, olhei para ela naquele instante sem querer. Parado no meio da calçada, intenso movimento urbano, fitei o fundo azul celeste e o pequeno elemento etéreo que deslizava entre as curtas correntes de ar. A pluma descia em minha direção, e eu, de pescoço estendido, olhando pra cima, contemplava a suavidade contrastante daquele pequeno suspiro de magia, num dia ensolarado e tenso.

Despertei em queda livre, no alto de um céu azul intenso. O vento que soprava em minha fronte massageava-me. Era forte, frio e as vezes morno, mas sempre firme. Demorei-me observando a paisagem, até notar que não voava, simplesmente caía. Confesso ter me dado o medo dos que prevêem o impacto contra o chão. Se não fosse pelo fato de que sou uma pluma, talvez tivesse gritado de pavor.

O coração acelerou a medida que a pluma descia, e já não constava mais na altura dos telhados. Uma lufada de ar, e ela rodopiou, saindo da direção de meu rosto e indo para frente. E junto com ela, foi minha atenção. Não sei explicar o por que, mas meu coração acelerou. Repentinamente nasceu em mim aquela emoção de herói, e o forte compromisso de salvar a tal da pluma que descia.

Perdi-me em devaneios conforme descrevia uma descida harmoniosa no ar. Deixei-me carregar pela brisa com a preocupação de quem contempla o mar. Cheguei a fechar os olhos para não me ver esbarrar no concreto da construção que se erguia ao meu redor. Mas foi num momento deste, de transe imerso em meus pensamentos, que senti uma mão invisível me levar para o lado... seria o destino?

Atravessei, correndo, um grupo de senhoras que caminhava pela calçada. Pedi desculpas aos berros, mas não pude tirar os olhos da pluma que caía indefesa. Me puni mentalmente pela falta de educação. Em seguida saltei um mendigo que pedia esmolas na rua, desviei de um cachorro desavisado, e parei bruscamente para não atropelar uma criança... que riu de minha cara de espanto. E lá ia a pluma...

Não fiz cerimônia. Penso que se alguém lhe quer, devemos nos entregar. Soltei minha vontade e disse ao mundo “carregue-me”. E ele me responde com uma gentil guinada no vento. Senti todo o meu sutil peso sendo carregado delicadamente por um tobogã de brisas que me fazia rir animadamente. É divertido deixar a vida levar-te, assim, suavemente.

Imprudentemente atravessei a rua sem repara no veículo que vinha. Buzinas, palavrões, os motoristas tentavam chamar minha atenção, mas meus olhos meio que grudaram na pequena e etérea pluma. Ai de mim, que quase morro, por um ato de heroísmo estúpido. Comecei a preocupar-me quanto a minha sanidade mental. O que me leva a sentir tamanho compromisso em salvar aquela pluma? Seria o amor pelo desafio ou pela aventura?

Notei de relance, porém, que enquanto caia, era perseguido por alguém. Seus olhos fixos em mim, jeito atrapalhado. Olhei para o meu redor e não vi nada mais que ele pudesse estar olhando. O vi tropeçar e cair na calçada, levantar-se em seguida, e continuar a correr, fitando-me. Assustei-me! O que aquele insano queria comigo? Parei no tempo e no espaço para tirar satisfações!

A pluma encontrou ventos convergentes numa esquina, e por alguns instantes ficou parada no ar. A incerteza de pra onde ela iria, que rumo seguiria, consumia meu peito. Eu a fitava ansioso, quase choroso, querendo uma resposta. Mas ela não ia, simplesmente não se movia numa direção específica. Só rodopiava, e rodopiava, e rodopiava... levando junto minha mente...

Moço bobo, penso eu. Só me fitava do chão, com uma cara assombrada, como quem pede alguma coisa. Seria socorro? Mas o que posso eu, uma simples pluma, socorrer um homem? Ah! Gente esquisita – pensei. Julguei mais apropriado para uma pluma respeitosa feito eu, que seguisse meu caminho novamente. Não havia motivos para continuar com aquela troca de olhares no meio da rua. Parti!

A pluma moveu-se graciosamente no ar, sendo direcionada por mais uma lufada do vento. Precipitei-me em sua direção, quando aconteceu... de frente, vindo a mim, surgiu a mulher mais delicada e bela que meus olhos já tiveram o prazer de contemplar. Branca como a neve, cabelos castanhos em ondas até o meio das costas... um par de olhos grandes, amendoados, brilhants... e sua boca...

Ia me saindo quando vi a moça, vindo despreocupada, na direção da esquina. De relance a fitei e num momento epifânico visualizei a situação: ela iria chocar-se com o moço estranho, que me perseguia até então. Não resisti: gritei por ela, para avisar. Clamei por cuidado, implorei que ela me olhasse. Mas era total a desatenção daquela moça, tão desligada e ausente do mundo, que ela não me percebeu. E aconteceu...

Não consegui controlar meus pés, e meu corpo se chocou violentamente com o dela. Suas coisas caíram no chão, mas num ato verdadeiramente heróico – agora sim – consegui desviar-me de forma que apenas eu caísse, e ela fosse preservada da queda. Me desculpei, e sorri, e a ajudei a recolher suas coisas do chão. Sorridente e simpática, ela riu de mim, e me ajudou também. Nos conhecemos ali. E a pluma... nunca mais vi...

O moço estranho e a moça desligada sorriam e conversavam, mesmo ele tendo lhe jogado os pertences todos no chão. Não compreendi. Mas também não fiz questão... dei minha face ao vento, fechei os olhos, e voei!